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A Noite das Mãos Frias

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As lâmpadas enferrujadas de gás mal iluminavam as ruas cobertas de neblina. O investigador sobrenatural Adriano Varela caminhava pelas vielas de pedras molhadas, sentindo a respiração da cidade pulsar em ecos úmidos e gotejantes. Não era a primeira vez que era chamado para casos assim, mas havia algo distinto naquela sequência de mortes. As vítimas eram sempre mulheres da noite; prostitutas que trabalhavam sob a sombra dos becos. Todas encontradas sem sangue, com os olhos revirados e marcas de garras frias, como dedos de cadáveres.


O bordel de Madame Lídia fora o ponto inicial da investigação. As sobreviventes falavam de “criaturas esguias, envoltas em véus de sombra, com mãos que queimavam como gelo”. Uma delas jurava ter ouvido sussurros em línguas mortas, repetindo nomes de antigas rainhas enterradas nos cemitérios da cidade.


Adriano, com sua lamparina e um crucifixo gasto, percorreu os becos onde as mulheres haviam sido atacadas. O silêncio era sufocante, interrompido apenas por soluços distantes e o gemido metálico das placas balançando ao vento. Ali, ele sentiu o frio. Não um frio natural, mas aquele que vem da ausência de vida. O ar se movia contra ele, como se respirasse em sua nuca.


Subitamente, uma sombra se arrastou pela parede. Alta, magra, os membros longos demais para um corpo humano. Os olhos (se eram olhos) brilhavam em brasa mortiça. Adriano ergueu o crucifixo, mas a criatura não recuou; apenas estendeu a mão de dedos intermináveis, apontando para ele como se já o tivesse marcado.


Um grito rompeu a noite; não o dele, mas o de uma mulher ao longe. Correndo, Adriano encontrou uma prostituta caída no chão, ainda viva, os olhos arregalados de terror. Atrás dela, mais três criaturas emergiam da escuridão, como se fossem feitas de véus fúnebres arrancados de cadáveres. Ele sacou do bolso um frasco com óleo consagrado e lançou ao chão, acendendo um círculo de fogo. As sombras recuaram, uivando como feras aprisionadas.


A mulher, trêmula, agarrou sua mão:

— Eles vêm das criptas, senhor... das criptas sob a Catedral do Sangue...


E então, desmaiou.


Adriano sabia, no fundo, o que isso significava. Aquelas não eram apenas aparições sem dono: eram guardiãs, despertadas de algum pacto antigo. E alguém, em algum lugar da cidade, havia quebrado o selo que as mantinha presas.


E agora elas se alimentavam.


Adriano caminhava com passos pesados, a lamparina em uma mão e a outra firme no cabo de sua bengala de ferro. A Catedral do Sangue erguia-se diante dele, suas torres góticas afiadas contra o céu noturno, onde nuvens negras pareciam coagular. O nome da igreja sempre lhe parecera irônico; mas agora, à luz das mortes, soava como uma confissão.


As portas rangiam quando ele as empurrou, liberando o hálito frio de incenso envelhecido e velas que jamais chegavam a se consumir. A nave estava deserta, mas nos bancos quebrados havia manchas escuras que não eram de vinho. Ele desceu pelas escadas ocultas atrás do altar, cada degrau afundando mais fundo em silêncio sepulcral.


As criptas eram vastas, um labirinto de pedra úmida e inscrições em latim, muitas riscadas com símbolos ainda mais antigos. Adriano passava os dedos pelas runas, sentindo um calor estranho, como se as palavras ardessem em sua pele. Ao longe, um som ressoava; não passos, mas algo arrastando-se, como tecido molhado contra o chão.


Quando entrou no salão principal da cripta, a verdade o atingiu: as paredes eram cobertas de esculturas de mulheres, com os rostos em pranto, todas com os olhos arrancados. No centro, um altar de mármore negro estava manchado de sangue fresco, e sobre ele repousava um livro aberto, preso por correntes.


Adriano aproximou-se e leu o título gravado em ferro enferrujado: “Litania das Mãos Frias”.


As páginas eram pele costurada, e nelas falava-se de um culto esquecido que oferecia prostitutas em sacrifício para manter os nobres da cidade protegidos da peste. As vítimas, amarradas e mortas sob a lua, voltavam como guardiãs sombrias; as Criaturas do Véu, conhecidas pelos sussurros de suas mãos gélidas.


De repente, um vento soprou dentro da cripta, apagando a lamparina. Adriano ouviu, vindo de todos os lados, vozes femininas em uníssono:

Nós fomos traídas... nós fomos devoradas...


Do teto, das colunas e das fendas entre os túmulos, elas surgiram. As mesmas criaturas esguias dos becos, mas agora em maior número, dezenas delas, curvando-se, os véus negros arrastando-se pelo chão como rios de sombra. Seus olhos vazios brilhavam em vermelho, e todas avançavam para o altar, para o livro... para Adriano.


Ele ergueu sua bengala de ferro e sussurrou uma oração rápida, mas sabia, em sua carne, que talvez estivesse diante de algo que nem sua fé nem sua ciência poderiam deter.


O círculo de véus negros estreitava-se, e Adriano sentia o frio das presenças o dilacerar por dentro, como se mãos invisíveis lhe apertassem o coração. Ele ergueu a bengala, mas sabia que ferro não bastaria contra horrores nascidos da fome e da traição.


Os sussurros ecoavam como um coral dos mortos:

Adriano... junta-te a nós... sente o frio, sente a perda...


Seus joelhos quase cederam, mas o olhar caiu sobre o Livro das Mãos Frias, ainda acorrentado ao altar. O texto tremulava, como se as palavras ardessem vivas no couro humano. Ele sabia o risco: tocar naquilo era selar o próprio destino. Mas hesitar seria permitir que as criaturas escapassem para a cidade e multiplicassem o massacre.


Com um rugido desesperado, ele quebrou as correntes com a ponta da bengala e abriu o tomo. As páginas giravam sozinhas, até parar em uma oração marcada em sangue seco:

“Carne negada, alma despida, regressa à terra de onde foste traída.”


As criaturas recuaram, os véus tremendo como se o vento os despedaçasse. Mas logo atacaram, investindo em massa contra ele. Adriano gritou as palavras, cuspindo-as em meio à dor que queimava sua língua. O som explodiu pela cripta como uma onda de trovão.


As figuras femininas começaram a gritar, suas vozes fundindo-se em lamentos lancinantes. Véus ardiam, corpos se dissolviam em pó, mas cada uma que desaparecia arrancava um pedaço da vitalidade de Adriano. Ele sentia sua pele se contrair, seus ossos queimarem.


Por fim, restava apenas uma; a mais bela, a mais trágica, com um véu rasgado que deixava ver um rosto pálido, olhos vermelhos e uma lágrima de sangue. Ela se aproximou, como se reconhecesse nele um último homem capaz de ouvir sua dor. Adriano deixou a bengala cair.


Perdoa-nos... — ela sussurrou.


E ele, com a última força que tinha, completou o cântico.


Um clarão se ergueu como o sol dentro da cripta. Quando as sombras se dissiparam, as esculturas nas paredes pareciam sorrir aliviadas, seus olhos de pedra intactos novamente. O altar estava vazio. O livro, reduzido a cinzas.


No chão, entre as fendas das pedras, jazia Adriano. Sua mão ainda segurava o cabo da bengala, mas seu corpo estava rígido, a pele marcada de símbolos incandescentes. Os monges que desceram dias depois encontraram apenas isso: o corpo de um homem que se tornou selo, guardião eterno da cripta.


E na cidade, as ruas tornaram-se silenciosas novamente. As prostitutas já não desapareciam. O preço, porém, estava pago.


Adriano vencera, mas sua alma... jamais seria libertada.



 
 
 

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