O covil de Luana
- Luna Bela Morte

- 21 de set.
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No silêncio de uma noite que parecia nunca acabar, as estrelas foram engolidas por nuvens densas, e a lua minguante mal conseguia lançar sua luz pálida sobre o bosque. O ar estava impregnado de um frio antinatural, como se até mesmo os ventos temessem atravessar aquele território esquecido. Foi nesse cenário que Luana, a bruxa de olhos de carvão e cabelos longos como véus de sombra, avançava entre árvores retorcidas.
Seu coração pulsava com a fúria do propósito: a chave lendária. Um artefato que, segundo os grimórios mais antigos do Ordo Umbrae, abria as portas de um covil vazio; um espaço onde os tesouros da magia negra estavam guardados, não apenas riquezas materiais, mas segredos de poder capazes de corromper até os mais puros.
Mas a chave tinha um guardião.
E era por isso que a terra tremia sob seus pés.
Das profundezas, um rugido ressoou como ferro rasgando ferro. As sombras se moveram e, do meio da escuridão, ergueu-se um demônio de olhos incandescentes, como brasas que jamais se apagam. Seus chifres eram retorcidos, e sua pele exalava fumaça, como se cada fibra de seu corpo fosse feita de carvão vivo.
— Você ousa me desafiar, bruxa? — a voz do demônio retumbou, como trovão preso em uma caverna.
Luana não recuou. Em sua mão direita, a rosa negra que usava como foco ritual começou a sangrar pétalas carmesim, e com a esquerda ela ergueu o punhal de prata banhado em vinho e sangue consagrado.
— Não estou aqui para implorar, criatura. — sua voz era fria, mas repleta de convicção. — Estou aqui para tomar o que me pertence.
O demônio sorriu, e seu riso era feito de ecos e lamentos.— A chave não pertence a ninguém, exceto ao vazio. Mas para alcançá-la, precisará atravessar a mim.
A floresta se fechou em trevas. As árvores se curvaram como testemunhas silenciosas. E, sob a chuva que começava a cair fina e pesada, a batalha entre a bruxa e o demônio teve início; uma dança de fogo e sangue, onde cada feitiço de Luana ecoava como um trovão, e cada golpe da criatura incendiava o chão.
Mas Luana sabia: o verdadeiro poder não estava na força bruta do inimigo. Estava no segredo que o covil vazio guardava.
E ela não descansaria até que aquela chave fosse sua.
A chuva engrossava, lavando o sangue das folhas e tornando o chão um altar de lama. Luana permanecia firme diante da criatura, seus olhos fixos no abismo incandescente que queimava nas pupilas do demônio.
— Você não pode me intimidar com sua fúria, criatura, — disse, com a calma de quem há muito aprendera a conversar com as trevas. — Eu mergulhei na maldade, fiz dela minha aliada, dissequei seus ossos e bebi de seu sangue. Não há segredo em ti que eu já não tenha desvelado. O mal não me vence, porque ele já é parte de mim.
O demônio a observou em silêncio, e então sorriu. Mas não era um sorriso de escárnio, e sim de quem carrega o fardo de um segredo proibido.
— Pobre bruxa… ainda acredita que o mal está em mim? — sua voz ecoou como trovão distante. — Olhe para além do véu. Pergunte-se: por que o Sistema teria transformado o Portador da Luz em um monstro? Que luz era essa tão perigosa, que precisava ser abafada com tanto medo?
Luana estreitou os olhos, mas permaneceu imóvel. O ser continuou, cada palavra como uma lâmina cravando-se em sua mente:
— Aquela luz era a verdade. Não a luz de obediência cega, mas a luz que rasga o véu da servidão. A verdade de que você não foi feita para ser uma ovelha, mas uma deusa. O pecado do Portador da Luz nunca foi orgulho, como dizem os púlpitos corrompidos… Foi ousadia. Ousadia em revelar à humanidade que cada homem e mulher também carregava a centelha divina.
As palavras reverberaram na alma de Luana como um cântico esquecido.
O demônio deu um passo à frente, e sua voz se tornou mais grave, mais íntima:
— Ele não se rebelou contra Deus. Ele se rebelou contra o Sistema. Contra a prisão da obediência, contra o medo. Por isso o demonizaram: para que a humanidade tremesse diante de seu próprio reflexo, temendo o fogo que arde dentro dela mesma. A luz que ele trouxe… é a mesma que queima em ti, bruxa. A mesma que arde em cada ser humano, esperando para ser libertada.
Luana se calou. As gotas da chuva escorriam pelo seu rosto como lágrimas que ela se recusava a derramar. Ela não era ingênua, já ouvira mil discursos e enfrentara incontáveis criaturas que tentaram seduzi-la com verdades distorcidas. Mas desta vez… não havia distorção.
Havia apenas eco.
E ela sabia, em sua essência, que aquela era a verdade que o mundo temia.
De repente, ela percebeu: não estava diante de um demônio comum. O ser que guardava a chave não era apenas um guardião. Era uma manifestação do próprio Portador da Luz, envolto em mistério e condenado pelo Sistema como a mais terrível das feras.
Luana cerrou o punho ao redor da rosa negra, sentindo as pétalas sangrando contra sua pele. O desafio que a aguardava não era apenas uma batalha por um artefato amaldiçoado. Era uma escolha.
Para obter a chave, precisaria encarar não apenas aquele ser, mas também a verdade incandescente que ele lhe oferecia: aceitar a luz proibida, ou continuar na escuridão confortável da obediência.
E pela primeira vez, a bruxa hesitou.
O vento rugia como um coro de almas condenadas, chicoteando os cabelos encharcados de Luana, mas ela não se moveu. Os olhos rubros do demônio faiscavam, não como brasas de destruição, mas como lanternas que iluminavam um segredo ancestral.
Ele ergueu a mão, e entre seus dedos surgiu a chave lendária, talhada em ferro negro e adornada com símbolos que mudavam de forma como se respirassem. Um objeto vivo, pulsante, vibrando entre o abismo e a promessa.
— Quer a chave, bruxa? — sua voz soou como um cântico grave, ressoando nas paredes invisíveis daquela noite. — Ela não pode ser conquistada pela lâmina, nem pela malícia. Nem mesmo por tua coragem diante dos monstros. A chave só se abre para quem ousa assumir aquilo que é: a centelha do divino que os homens temem e o Sistema apagou.
Luana ergueu o queixo, seu olhar duro como o aço.
— Não temo tua luz, se é isso que desejas. Já caminhei em trevas tão profundas que qualquer clarão parece uma ferida ardente. Se me desafias a abraçar o que sou, saiba: já carrego em minhas veias o sangue das bruxas queimadas, já danço com os mortos e já bebi da eternidade.
O demônio riu, mas sua risada não era zombeteira. Era o riso de um mestre que ouve o eco de sua própria lição.
— Tu falas de poder herdado. Mas o que fizeste de ti mesma? — ele se aproximou, e a cada passo o chão estremecia. — Carregar o fardo das sombras não é o mesmo que assumir a chama que te pertence. Tens coragem de dizer, diante de mim e diante do céu, que não és uma serva? Que não és uma peça no tabuleiro que os deuses moveram para se divertir? Tens coragem de dizer que és deusa?
O silêncio caiu entre eles, pesado como o véu da eternidade. A chuva, que antes parecia lavar o mundo, agora soava como um julgamento.
Luana sentiu o coração pulsar com força, como se desejasse rasgar o peito. Cada batida lembrava-lhe das correntes invisíveis que a prendiam desde a infância: o medo de ser pequena, de ser apenas um fragmento perdido no cosmos.
Mas ali, diante do demônio, não havia espaço para covardia.
— Eu não sou serva de ninguém. Nem de ti, nem do Sistema, nem de qualquer deus. — Sua voz quebrou o ar como uma lâmina. — Se carrego luz em mim, não é para adorar, mas para incendiar. Sou bruxa, sim, mas também sou mais: sou a própria noite feita carne, e dentro dela existe um fogo que nem mesmo a eternidade ousa apagar. Se isto é ser deusa, então o serei.
As palavras ecoaram como trovões. O demônio inclinou a cabeça, seus lábios curvando-se em algo que era quase reverência.
— Então prova, Luana. Prova que tua chama não é apenas discurso. Prova que tua divindade não se desfaz diante do peso da verdade.
Ele estendeu a chave em direção a ela, mas o ferro não se moveu. O objeto pairava entre eles, pulsando como um coração vivo.
— Toca-a, se tiveres coragem. Mas saiba: quem segura esta chave não pode mais voltar. Aquele que aceita sua luz proibida jamais poderá fingir ser pequeno outra vez. És capaz de carregar esse fardo?
O coração de Luana batia em fúria, e o sangue queimava em suas veias como vinho envenenado.
A chave tremeluzia diante de seus dedos, pedindo que fosse tomada.
E naquele instante, entre a chuva e a eternidade, Luana soube que estava prestes a decidir não apenas seu destino, mas o destino de todos que ousassem olhar para a luz com olhos abertos.
A mão de Luana tremeu por um instante, mas não pelo medo; era o peso da eternidade se manifestando em seu corpo mortal. Seus dedos tocaram a chave, e imediatamente um arrepio percorreu-lhe a espinha, como se cada célula reconhecesse o pacto invisível que estava sendo firmado. A chave queimava, não como fogo, mas como uma luz proibida que devorava e nutria ao mesmo tempo.
Ela a ergueu diante da porta colossal do covil, cujas runas antigas pulsavam como feridas abertas no tempo. Com gesto firme, introduziu o ferro vivo na fenda da fechadura.
Um estalo ecoou como o grito de mil condenados. A porta rangeu, o mundo vibrou, e Luana acreditou ter aberto o que estava selado desde eras imemoriais. Mas o que seus olhos viram foi a revelação cruel: a porta nunca estivera trancada. Apenas encostada, como um segredo à espera de ser descoberto.
E ao girar a chave, ao invés de libertar a passagem, ela a selou. Correntes de sombras se formaram nas bordas, fechando-se com estalos metálicos, e a entrada se transformou em uma prisão perfeita.
Do alto, o riso do demônio soou; um trovão de escárnio que fez a escuridão estremecer.
— Ah, pequena deusa! Quiseste provar tua grandeza, mas esqueceste a primeira lição da luz: nem tudo o que brilha liberta.
A chave dissolveu-se em fagulhas negras, retornando à mão dele, que a segurou como um troféu. Seus olhos faiscavam, e com um último sorriso cruel, seu corpo dissolveu-se em névoa, desaparecendo na escuridão que o parira.
Luana, sozinha no covil, ergueu os olhos ao redor. As paredes pulsavam com símbolos arcanos, e livros encadernados em pele respiravam como criaturas adormecidas. Cálices de ossos, estatuetas sombrias, instrumentos de rituais esquecidos; tudo estava ali, ao alcance de suas mãos. Segredos de magia negra, tesouros ocultos do saber maldito.
Mas não havia saída.
Ela encostou a mão no peito, e percebeu que seu coração já não batia como antes. Ele pulsava lento, majestoso, como um tambor eterno. A imortalidade havia tomado conta dela; não como um presente, mas como uma condenação.
Por um momento, o silêncio a envolveu. Então, seus lábios se curvaram em um sorriso frio, e sua voz ecoou como cântico profano:
— Que assim seja. A chave me aprisionou, mas também me coroou. Agora sou deusa, rainha de um império de sombras. Tenho paciência. Um dia, encontrarei a brecha deste encanto. E quando sair… o mundo inteiro aprenderá o verdadeiro significado da escuridão.
Ela riu. Um riso profundo, que reverberou nas paredes do covil até transformar-se em sinfonia de trovões.
A prisão havia se tornado seu trono. E a eternidade, sua serva.
O silêncio do covil era um peso quase físico, e Luana sentia-o deslizar sobre sua pele como véu de luto. Caminhou entre os altares esquecidos, onde o pó era mais antigo que impérios e as velas queimavam sem nunca se consumir. Foi ali que encontrou o primeiro livro, encadernado em pele cinzenta, as costuras feitas com fios que mais pareciam veias.
Ao abri-lo, o ar se condensou, e cada página sussurrava como boca de cadáver. O feitiço que se revelou a ela era chamado "O Cântico das Sombras", um encantamento capaz de dar forma às trevas e fazê-las obedecer à vontade da bruxa.
Luana pousou a mão sobre as runas negras, e sua voz ecoou em latim corrompido, vibrando como um trovão abafado:
— Umbrae, surgite et mecum ambulate…
As paredes estremeceram. Das fendas do chão, do teto, dos cantos mais escuros, sombras ganharam corpo. Não eram espectros, mas criaturas de escuridão viva, de olhos vermelhos como brasas. Elas a rodearam, não como inimigas, mas como súditos reconhecendo sua soberana.
Um sorriso curvou seus lábios.
A prisão havia se tornado laboratório. O covil, templo. O feitiço, sua primeira coroa.
Séculos depois...
O mundo acima esquecia-se da colina maldita, onde a casa da chave se tornara ruína intocada. Mas no subterrâneo, Luana reinava. Não mais simples bruxa; mas divindade aprisionada, forjada no cadinho da eternidade.
Seus olhos brilhavam como estrelas mortas, e sua pele refletia a própria noite. Suas sombras agora eram legiões, guardiãs do segredo. Ela aprendeu a ouvir o coração do mundo, a manipular o fluxo das almas que passavam próximas ao covil, sugando segredos de magos e sonhos de mortais.
E cada novo século que se erguia e desmoronava apenas alimentava sua paciência.
Na solidão, ela cresceu.
Na prisão, ela se fez deusa.
Sentada em seu trono de ossos e ferro, ergueu a mão pálida, e o universo ao redor dela pareceu tremer.
— O demônio acreditou que me selara… mas só me coroou.
E enquanto as eras passavam como folhas secas ao vento, um sussurro se espalhava entre aqueles que ousavam falar seu nome:
“Luana, a Deusa do Covil. Senhora das Sombras.
Aquele que a libertar, libertará a própria Noite.”




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