O Banquete do Véu
- Luna Bela Morte

- 6 de out.
- 10 min de leitura
Um conto de sangue, tentação e condenação sob a lua de Barcelona.

A lua descobre Barcelona como quem espia um espelho quebrado: refletida em pedaços, bela e perigosa. Nas ruas quentes do bairro gótico, onde as pedras ainda lembram de reis e pragas, um vulto encapuzado corria; manto negro batendo nos calcanhares, um rabo afilado traçando segredos pelo ar, dois cornos pequenos a sobressair como promessas. A cidade tinha o cheiro do mar e de frituras tardias; tinha também, naquela noite, o perfume sintético que a criatura usava para confundir os sentidos dos mortais. Não funcionou.
Atrás dela vinha o caçador da Ordem do Véu, passo medido, olhos de pedra. Chamavam-no Castor, e o rastro que deixava era feito de silêncio armado. A Ordem não caçava por esporte. A Ordem caçava porque alguém tinha que conter aquilo que devora o que há de humano nos homens. Castor segurava na mão um punhal de aço velho e uma lâmina moderna, e na cintura um medalhão com um dos símbolos sagrados usados pela ordem do Véu: duas luas cruzadas sobre uma chave. Era uma mistura de liturgia com pragmatismo; preferível à hipocrisia de quem só reza.
A perseguição começou na Plaça Reial: as palmeiras eram sombras que batiam palmas ao passo dos perseguidores, e virou La Rambla, onde turistas bêbados aplaudiam um mimo vivo, sem perceber que a artista do momento era uma predadora com dentes invisíveis. A criatura puxava o capuz quando passava por grupos de jovens; o capuz não escondia nada. Os olhos dos presentes tinham o brilho das telas, distraídos. Mas Castor via: o rabo que se enrolou num degrau, a ponta do chifre que pegou luz no reflexo de uma vitrine. A cidade, que costumava engolir segredos, cuspia respostas naquela noite.
Do calçamento largo de La Rambla eles se enfiaram em vielas que cheiravam a sal e a musgo; o Barri Gòtic fazia o papel de labirinto ancestral, como que lembrando que as pedras da cidade sabem guardar pactos. A perseguição passou por baixo do Pont del Bisbe, onde as gárgulas observam com presunção. Castor ouviu o tecido do manto da criatura arrastar-se sobre a pedra antiga, ouviu também a orquestra de vozes noturnas: um duo de violoncelos de algum bar, gargalhadas abafadas, um sino que não acertou o tempo. A mulher-demoníaca corria com graça de bailarina e o corpo de quem conhece o sabor da madrugada; ela era a sedução que cede só quando quer, e Castor sabia que quando ela cedesse, outro pagaria.
Elena, pensei; sempre penso em nomes quando vejo almas perdidas, poderia ter sido enganada assim: uma promessa umedecida, uma boca que beija o futuro e rosna o passado. Mas Castor não se deixou levar por lembranças. O treinamento da Ordem amargara suas memórias, deixando-as puras e perigosas. Ele entoava baixinho preces que mais funcionavam como escudo: não pedira proteção a deus nenhum; pedia à sombra que fosse menos traiçoeira. Funcionava o suficiente.
A criatura se enfiou no Born, passando pelo Mercado de Santa Caterina cujas cores estavam adormecidas. Ali, entre arcos e portas baixas, ela tirou vantagem dos becos estreitos; a cidade era uma amante generosa para quem a conhecia. Castor, no entanto, tinha nas palmas marcas antigas: símbolos inflamados que a Ordem tatuava nos seus para alertar os espíritos. Na mão esquerda um anel de ferro, na direita o punhal; no peito, ainda, um talismã de prata; objeto que não era só ornamento, mas uma palavra escrita em metal: Resisto.
— Para! — rugiu Castor, voz que dobrava com a autoridade de quem não deseja ser ignorado. O som espalhou-se entre fachadas de pedra e cafés fechados. A criatura olhou por cima do ombro, sorriso que não chegava aos olhos. Não era medo. Era convite.
Ela decidiu brincar. Parou na rua estreita do Carrer de la Palla, onde os cafés têm guardas de gatos. Tirou o capuz e caminhou de costas, fazendo do silêncio um tapete. Castor avançou. Os dois sabiam o que vinha: um confronto que não seria nem apenas de lâminas nem só de rituais.
— Tu és da Ordem? — a voz dela era um fio, sedosa, cortante. — Os teus homens adoram trajes caros e promessas baratas.
Castor não respondeu. O medalhão brilhou num reflexo fugaz. Quem não tinha medo encontraria em Castor um traço de humanidade dura: ele hesitou por milésimos, o suficiente para sentir a verdade que a criatura lhe oferecia; uma verdade que cheirava a pó ancestral e a vitória.
— Por que foges entre os humanos? — ela sibilou, ainda com o capuz jogado para trás. Seus chifres menores tremeluziam. Ela era bonita como as histórias esquecidas são bonitas: quase perigosamente humana, com falhas que convidavam ao abraço.
— Porque é o meu trabalho — disse Castor, as palavras curtas como preces. — E porque não quero que médios e desavisados descubram o que vosso tipo faz com o coração das pessoas.
A risada dela era tela rasgada. — O coração? — tossiu de leve. — Tu fala de corações como se eles não pedissem para serem devorados. E nós, nós apenas obedecemos à fome.
Num lampejo, ela tentou outra coisa: avançou para um beco que desliza até a costa, perto do Passeig del Born, onde se sente uma brisa que leva o sal do porto. Castor acelerou. A cidade se abriu em promessas; a Sagrada Família muito longe, Gaudí indiferente, a catedral mais próxima como testemunha. Ao alcance do port, as luzes do Port Vell piscavam, e o mar chamou com seu sotaque azul.
Eles surgiram num pátio onde turistas raramente vão, junto a uma escadaria antiga. A criatura parou como quem aceita um convite; Castor o percebeu e, por um sopro, soube que aquela dança terminaria em sangue; ou em silêncio. O punhal brilhou. O manto dela virou redemoinho. O rabo cortou o ar.
Naquele instante, o mundo foi reduzido a um momento que cheira a ferro, a sal, a promessas partidas. Castor avançou com a precisão de quem já perdeu tudo e, ainda assim, acorda para lutar. A criatura sorriu uma última vez. Não por medo, mas por prazer. E a lua, cúmplice e fria, foi testemunha.
Barcelona: uma cidade que guarda o que acontece entre as pedras. E, como toda cidade antiga, suas histórias boas terminam onde começam outras piores. Assim como em diversas outras cidades espalhadas pelo mundo, a Ordem do Véu caça as criaturas das trevas porque o mundo precisa de alguém que lembre às trevas que há regras. E as trevas? As trevas riem, e continuam a andar pelas ruas, consumindo o que acham apetitoso.
Castor ficou, depois, sob a luz oscilante de um lampião. O medalhão já não brilhava tanto. À sua volta, o ar exalava sal. E no fundo do seu peito, onde a Ordem havia cravado sua missão, havia uma pergunta que só ele ouviu: será que, quando a cidade adormecer, outras mulheres de capuz vão voltar a correr, e outras ordens terão de levantar-se?
A resposta, como todas as boas respostas, veio em forma de passos. Novos passos, outros caçadores, outras presas. E Barcelona guardou o segredo entre pedras frias, até que a próxima lua resolvesse levantar o véu.
O vento virou frio como aço líquido. Barcelona sussurrava pecados entre as ruelas úmidas do Barri Gòtic, onde a lua se fragmentava em cacos nas vidraças antigas. Castor, ainda escondido nas sombras, percebeu o som de passos que não eram os seus; passos firmes, controlados, o tilintar metálico de quem trazia consigo os instrumentos da Ordem. Outro caçador.
O homem avançava pela esquina do Carrer dels Mirallers, a lâmina presa nas costas e um crucifixo invertido tatuado no pescoço: sinal dos novatos da Ordem, que acreditavam que desafiar o símbolo dava poder. Ele ainda tinha fé nas próprias convicções. Castor, não.
A criatura (a bela diaba) caminhava depressa, o manto deslizando como fumaça viva. Ela virou de repente à direita, entrando num beco largo onde as luzes piscavam em tons vermelhos e lilases. Ali, o som grave de batidas eletrônicas e guitarras soturnas dominava o ar: “This Corrosion” ecoava de dentro, como uma invocação.
Na entrada, um demônio gigantesco erguia-se, imóvel, com asas recolhidas e chifres espiralados, sua pele parecendo feita de mármore negro. Uma pequena fila de jovens se acumulava diante dele; todos vestidos com trajes góticos e fantasias de Halloween: vampiros, bruxas, anjos caídos. O cheiro de perfume barato misturado a incenso tomava conta da rua.
E ninguém, absolutamente ninguém, percebia o perigo.
O grande demônio movia apenas os olhos, brilhando como brasas, mas para os mortais era apenas um animatrônico, uma peça cenográfica bem-feita. Ele era o anfitrião. E o nome da festa, Castor viu num letreiro digital acima da porta , era “La Noche del Pecado”.
A diaba aproximou-se do demônio e sussurrou algo que o vento não levou. Ele inclinou a cabeça, concedendo-lhe passagem. Ela entrou, mas antes de desaparecer na penumbra, subiu ágil por uma escada lateral que levava a uma espécie de vitrine de vidro, dois metros acima da rua.
As luzes focaram nela.
O som mudou. O ritmo do rock tornou-se mais denso, sensual. E a bela diaba, agora livre do manto, revelava o corpo coberto por couro e sombras. Dançava como quem invoca tempestades: cada movimento um feitiço, cada curva uma promessa. O público, abaixo, aplaudia, acreditando tratar-se de uma performance temática.
Mas não era um show. Era uma oferenda.
Castor se encolheu na sombra de uma coluna antiga, observando com os olhos de quem já viu infernos demais. Sabia o que estava acontecendo. Aquilo era um encantamento, um ritual de captura.
O outro caçador, o novato, parou em frente à entrada, o olhar fixo na dançarina. A música pulsava, e o corpo dele acompanhava sem querer. Castor notou o tremor leve nos dedos, sinal de possessão sutil. O grande demônio, imóvel, começou a mover a boca. Nenhum som humano saiu de seus lábios, apenas um murmúrio grave, quase imperceptível, repetindo algo em uma língua que cheirava a enxofre:
“Accede, accede, peccator… accede, servus tenebrarum…”
— Aproxime-se, pecador… aproxime-se, servo das trevas…
O novato deu um passo. Depois outro.
Os olhos dele estavam vidrados, dilatados, o corpo relaxando em rendição. Castor apertou o punhal. Ele queria correr, gritar, quebrar o encanto. Mas sabia o que aconteceria se interferisse: o demônio voltaria os olhos para ele, e o feitiço dobraria sua vontade também.
Então ficou. Preso entre a ação e o medo.
A diaba agora se arqueava no alto, a pele reluzindo sob as luzes vermelhas, os chifres pequenos cintilando como joias. Sorria; e aquele sorriso era uma confissão. O público aplaudia. O outro caçador subia o primeiro degrau da entrada. O demônio, de olhos em brasa, abriu levemente a boca, exalando fumaça negra que serpenteava pelo ar como um lençol vivo.
Castor fechou os olhos. Sabia que o feitiço estava completo.
E enquanto o novato desaparecia na sombra do portal, tragado por um convite que julgava ser apenas uma festa, o caçador veterano entendeu o mais cruel dos presságios:
Aquela noite em Barcelona seria o início de uma caçada muito maior.
Pois a Ordem do Véu havia esquecido que o mal não se esconde apenas nas trevas.
Às vezes, ele dança sob holofotes.
E cobra ingressos.
O novato atravessou o limiar da festa, ainda enfeitiçado pelo ritmo e pelo perfume de pecado que pairava no ar. A música gótica ecoava pelos arcos de pedra, pelas colunas cobertas de musgo e neblina artificial. O demônio da entrada, imóvel como uma estátua viva, observava-o com olhos de âmbar derretido.
Castor, escondido entre as sombras, viu o caçador se aproximar da grande mesa que servia de recepção; uma peça antiga, feita de madeira escura, com entalhes de símbolos arcanos que pareciam pulsar sob a luz vermelha. Sobre ela, taças de vinho e velas negras tremulavam em chama azulada.
O demônio anfitrião deu um passo à frente. Seu corpo era descomunal, um monumento de carne e poder, e a cada movimento o chão vibrava. A voz dele era grave, profunda, como um trovão arrastado por séculos:
— Aproxime-se, filho do véu… ofereça teu olhar ao abismo que julgaste dominar.
O novato hesitou, apenas por um segundo. Mas a bela diaba, ainda dançando no alto, virou-se e o fitou nos olhos. Um olhar de mel e inferno. E nesse instante, ele obedeceu.
Do nada, dois demônios menores emergiram das sombras sob a mesa, suas garras longas como lâminas, rostos cobertos por véus de fumaça. Agarraram-no pelos braços, com força sobre-humana, e o jogaram contra a mesa, apertando o peito e o rosto contra a madeira antiga.
O público, ainda crente de que tudo fazia parte da encenação da noite, aplaudiu num primeiro momento…
O grande demônio retirou a jaqueta, revelando um corpo musculoso e infernal, coberto de cicatrizes que pareciam runas vivas. De um canto da mesa, ergueu uma marreta colossal, o cabo forjado em ossos humanos, a cabeça de ferro negro, manchada de velhos sacrifícios.
O novato tentou gritar, mas a mão de um dos demônios abafou o som.
Castor assistia. Paralisado. Sabia que se fosse descoberto, seria o próximo.
O demônio ergueu a marreta. O ar pareceu se partir em dois.
E o primeiro golpe veio direto na cabeça.
CRACK.
O som ecoou como um trovão, estilhaçando ossos e silêncios.
O segundo golpe fez o sangue espirrar em jatos sobre as velas, que tremeluziram em luz doentia.
O terceiro… silenciou tudo.
A música parou.
Os dançarinos, as risadas, até o suspiro da diaba. Tudo se congelou.
O corpo do caçador, agora inerte, afundava-se na madeira, com uma massa liquefeita no lugar da cabeça.
Então algo impossível aconteceu: do ponto em que o sangue se espalhava, um símbolo sagrado começou a se queimar sozinho na mesa, um círculo de runas antigas.
A madeira fumegava, exalando um cheiro sagrado, e uma fumaça prateada subiu em espirais lentas, subindo até o teto do beco.
O demônio deu um passo para trás, rosnando. A fumaça sagrada o fez recuar, e as chamas das velas tremularam com fúria. A diaba o observava com um sorriso ambíguo. Metade prazer, metade medo.
Castor sabia o que aquilo significava.
O selo havia sido ativado. A alma do caçador não seria deles.
Ele tinha morrido em serviço, e o Véu o reclamava.
O veterano recuou lentamente, o rosto banhado pelo brilho intermitente das luzes vermelhas e da fumaça branca. Ninguém notou sua saída. O público, ainda atônito, começou a gritar e fugir quando o cheiro de sangue e enxofre dominou o ar.
Castor virou a esquina, o som distante de sirenes humanas se aproximando. A noite de Barcelona engoliu-o como um segredo antigo.
Sabia que aquela batalha estava perdida.
Mas não a guerra.
E, no fundo de sua alma, um juramento reacendeu, frio, amargo e inevitável:
“O Véu cairá novamente sobre as trevas…E quando cair, até os demônios lembrarão meu nome.”
A lua, alta e indiferente, testemunhava.
E nas ruelas silenciosas, o sangue ainda fumegava sobre a mesa que queimava devagar, entre o sagrado e o profano.




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