O Sangue Proibido
- Luna Bela Morte

- 19 de set.
- 18 min de leitura

Nas colinas envoltas por névoas perpetuamente tristes, erguia-se um castelo como uma cicatriz no tempo. Suas torres góticas, pontiagudas, pareciam mãos de pedra tentando arranhar o céu, e suas janelas, vitrais partidos, guardavam séculos de solidão. Ali, entre corredores frios e salões mergulhados em penumbra, vivia Adrian, o vampiro milenar. Belo como a própria tragédia, seus olhos eram espelhos de luas antigas, e sua voz carregava o peso de lamentos que nem mesmo a eternidade conseguiu dissolver.
Ele havia renunciado ao mundo, jurando lealdade apenas às paredes úmidas que o aprisionavam. Mas a morte é fraca diante de um olhar ardente, e os corações (mesmo os mortos) são frágeis diante da juventude. Foi numa noite em que a tempestade beijava as janelas com trovões que ela entrou no castelo: Helena, uma jovem que parecia ter sido tecida pela própria escuridão. Seus passos ecoaram suaves, mas cada batida soou para Adrian como uma profecia.
No início, foi apenas fascínio: ele, a fera imortal, e ela, a mortal que ousava fitá-lo sem medo. O romance floresceu em segredo, nas bibliotecas empoeiradas, nos salões onde os candelabros soltavam lágrimas de cera. Ela o amava com uma devoção insana, e ele a desejava não como presa, mas como a única chama capaz de romper seu exílio eterno.
Mas um amor assim não poderia existir sob o jugo do tempo. Helena não aceitava ser efêmera diante da eternidade dele. “Adrian”, sussurrou numa madrugada, “não quero ser lembrança. Quero ser tua noite.” Ele resistiu, pois sabia o peso da imortalidade. Mas resistir à paixão é como tentar conter um rio com as mãos.
E então, sob a luz carmim de uma lua faminta, ele a marcou com o beijo mais cruel e mais doce: o beijo da transformação. O sangue ardeu em suas veias, seus olhos queimaram como dois sóis negros, e Helena morreu para o mundo, apenas para renascer no abismo da noite.
Os corredores do castelo não podiam mais contê-los. Helena, agora rainha sombria, recusou-se a viver nas ruínas da solidão. Tomou Adrian pela mão, como quem arranca correntes, e juntos abandonaram o mausoléu de pedra. A cada passo que davam para fora dos portões enferrujados, as sombras do castelo se retorciam, como se prendessem um suspiro milenar.
E assim, dois imortais nasceram novamente, não para o cárcere da eternidade imóvel, mas para vagar sob luas de todo o mundo. Paris os recebeu em suas catacumbas. Veneza, em seus bailes mascarados. Praga, em suas ruas enfeitadas de gárgulas. Onde quer que fossem, dançavam entre a vida e a morte, eternamente apaixonados, eternamente condenados.
Pois não há prisão para quem ama no escuro, e para eles, o mundo inteiro tornou-se apenas um vasto cemitério a ser explorado, um palco perfeito para o espetáculo de sua paixão proibida.
O amor noturno de Adrian e Helena atravessou fronteiras, deixando rastros invisíveis nas cidades que se tornaram testemunhas de sua dança sombria. Mas a eternidade, ainda que pareça infinita, não é feita apenas de delírios e beijos roubados; sempre há olhos que vigiam, ouvidos que escutam, mãos que preparam armadilhas na escuridão.
Foi em Budapeste, sob as torres iluminadas do Danúbio, que o inesperado os alcançou. Eles passeavam pelas vielas antigas, onde a música dos violinos ecoava como lamento de fantasmas. Helena, recém-nascida no abismo da imortalidade, ainda se embriagava com os sentidos afiados: o perfume do vinho derramado em copos esquecidos, o pulsar do sangue em cada garganta viva que passava, o vento frio acariciando sua pele que já não conhecia o calor. Adrian, vigilante, caminhava ao lado dela, atento como uma fera que sabe ser caçada.
O ataque veio como uma sombra dentro da sombra. Um homem de capa longa, olhos cinzentos como lâminas, ergueu uma cruz enegrecida diante deles. Não era um amuleto comum, mas um artefato antigo, impregnado de sangue de mártires, que queimou o ar ao redor. Helena cambaleou, sentindo a carne imortal arder como se fosse mortal. Adrian a segurou, mas o desconhecido já sacava uma adaga de prata cravada com runas.
— Adrian de Veyrac — a voz do homem ecoou, carregada de ódio ancestral. — Achei que ficaria escondido em ruínas para sempre. Não esperava que trouxesse uma nova criatura para vagar com você.
O vampiro milenar franziu os lábios num sorriso frio, ocultando a tensão. Conhecia aquele tom, aquela força. Os descendentes da Irmandade dos Caçadores ainda respiravam, e um deles agora estava diante deles.
Helena, ainda fraca sob o peso do artefato, tentou avançar, mas Adrian a deteve. O caçador, com um brilho febril nos olhos, continuou:
— Juramos exterminar sua linhagem, demônio. Hoje, começo pelo coração da tua amada.
As palavras atravessaram o silêncio como um punhal. Helena arquejou, não pelo medo, mas pela fúria. Adrian, com a calma de séculos de escuridão, respondeu com voz baixa e mortal:— Você cometeu um erro fatal ao falar em tocá-la.
E então a noite se rompeu em caos. O caçador moveu-se rápido como o relâmpago, mas Adrian era a própria tempestade. Sombras ergueram-se como muralhas ao seu redor, envolvendo-o em uma dança de aço e sangue. Helena, ainda que debilitada, sentiu os instintos vampíricos clamarem em sua carne recém-transformada. Seus olhos, agora vermelhos como brasas, brilharam com um ódio que nunca conhecera em vida.
O combate não foi simples. A adaga de prata cortou a pele de Adrian, e o cheiro metálico do sangue antigo impregnou o ar. Helena gritou, sentindo que o coração, se é que ainda tinha um, se despedaçava. Em um gesto desesperado, lançou-se sobre o caçador, cravando-lhe as presas na garganta. O gosto foi diferente: não doce, não prazeroso, mas amargo, impregnado de maldições e rezas. Ainda assim, era vida, e ela a tomou com fúria, arrancando dele a força que pretendia destruí-los.
Quando o corpo tombou inerte no chão, Adrian a envolveu, segurando-a como se ela ainda fosse a frágil mortal que conhecera no castelo. Mas os dois sabiam: aquilo era apenas o início.
Se um caçador os encontrara, outros viriam. O mundo, antes palco para seu romance proibido, agora se tornara também campo de batalha.
Helena limpou o sangue dos lábios, e seus olhos brilharam como fogo na noite.— Que venham, Adrian. Se tentarem nos separar, o mundo inteiro há de sangrar conosco.
E assim, na fria madrugada húngara, entre o cheiro de sangue e chuva, os dois amantes imortais selaram não apenas seu amor, mas sua guerra contra todos os vivos que ousassem desafiá-los.
Ainda sob o peso da batalha em Budapeste, Adrian e Helena sabiam que não havia tempo para hesitar. O sangue do caçador ainda manchava a boca dela, e as ruas sussurravam com rumores invisíveis. O inimigo caído era apenas um prenúncio: onde um caçador caminhava, uma legião poderia segui-lo.
Foi Adrian quem falou primeiro, com sua voz baixa como trovão distante:— Devemos ir para onde até a luz do dia teme entrar. Há um lugar, Helena. Um território esquecido pelos homens, onde os imortais são protegidos.
A viagem os levou por florestas densas, trens noturnos e estradas onde apenas lobos ousavam uivar. Helena sentia a mudança em si mesma; cada noite tornava-a mais distante da mortalidade, mais próxima da criatura que Adrian havia despertado. Seu coração, embora silencioso, ardia em êxtase por aquela fuga. Estava em fuga com o mais belo monstro que os séculos já tinham criado.
Depois de semanas de sombras e disfarces, chegaram à Transilvânia, terra de lendas antigas e segredos enterrados sob castelos em ruínas. Ali, nas montanhas cobertas por névoa, erguiam-se portões negros de ferro, guardados por figuras silenciosas de olhos incandescentes.
Adrian tocou no portão com reverência.— O Refúgio dos Imortais — murmurou. — Nenhum caçador ousa cruzar estas terras. Aqui, somos protegidos por leis mais antigas que a própria cruz.
Helena estremeceu. A atmosfera parecia viva, como se os ventos trouxessem ecos de vozes ancestrais. O portão se abriu sem toque humano, e eles adentraram um território oculto ao olhar dos mortais. Havia vilas inteiras habitadas por vampiros de diferentes eras: guerreiros de armaduras negras, damas de vestidos vitorianos, jovens de aparência moderna com olhos que denunciavam séculos de sede.
Mas não foi a visão dos outros imortais que os surpreendeu; foi o coração do Refúgio.
No centro da cidadela subterrânea havia um altar de pedra, pulsante como se respirasse. Uma chama negra ardia sobre ele, não consumindo nada, apenas queimando eternamente. Ao se aproximarem, a chama reagiu. Helena, ainda nova no caminho da noite, sentiu uma vertigem profunda, como se a chama a reconhecesse.
Um dos anciãos do Refúgio, de pele pálida e cabelos prateados, caminhou até eles. Sua voz era como vento atravessando túmulos:— Vocês trouxeram o sangue proibido até nós.
Helena arregalou os olhos.— Sangue proibido?
O ancião sorriu com tristeza.— O caçador que tombou em tuas mãos não era apenas um inimigo. Ele carregava o selo da Ordem do Sol, e ao beber dele, você absorveu um poder antigo, amaldiçoado para nossa espécie. Essa chama negra respondeu ao teu sangue.
Adrian fitou Helena com espanto e fascínio.— Então… ela não é apenas uma recém-criada.
O ancião confirmou com um aceno lento:— Não. Ela é a portadora de um destino que pode quebrar as correntes entre vivos e mortos. Um destino que pode salvar… ou condenar todos nós.
O silêncio caiu como um manto de ferro. Helena sentiu, pela primeira vez, o peso de algo maior que o amor, maior que a eternidade: um fardo que poderia transformar sua fuga em profecia.
E naquela noite, entre as chamas negras e os olhares dos imortais, ela compreendeu que sua jornada com Adrian acabava de se transformar em guerra sagrada.
A noite no Refúgio dos Imortais tinha um silêncio diferente, pesado como se estivesse carregado de mil segredos. Helena e Adrian foram conduzidos a uma câmara subterrânea, onde colunas de pedra gótica sustentavam o teto enegrecido. O fogo negro ardia no altar central, e o ar tinha gosto de ferro e cinza.
Helena ainda sentia o eco da revelação em suas veias. “Sangue proibido”. O termo vibrava em sua mente como uma sentença. Adrian, sempre altivo, parecia inquieto, como se até ele, com seus séculos de existência, estivesse diante de algo que jamais ousara imaginar.
O ancião retornou, trazendo um tomo pesado, encadernado em couro humano, um livro que parecia pulsar como se tivesse coração próprio. Abriu-o diante deles, revelando páginas manchadas de vermelho.
— Há mil anos, — começou ele, — um caçador chamado Elias de Solis fundou a Ordem do Sol. Não era um homem comum, mas um híbrido, fruto de pacto entre clérigos e demônios menores. Seu sangue foi amaldiçoado pelos deuses que dormem nas trevas. O que o tornava nosso maior inimigo também o tornava… perigoso para si mesmo.
Helena sentiu o corpo tremer quando o ancião apontou para o símbolo gravado em seu peito. Um traço vermelho ardia sob sua pele, como se tivesse sido marcado a fogo.— Ao beber de Elias, tu carregaste essa herança. Tua alma não é mais apenas vampira, Helena. És a fusão impossível: a imortal que traz dentro de si o poder dos caçadores.
Adrian franziu o cenho. Sua voz saiu grave, quase um rugido:— Isso é uma blasfêmia. Nenhum vampiro poderia resistir a tal maldição.
O ancião o fitou com olhos frios.— E ainda assim ela está de pé. Não apenas sobreviveu, como despertou a Chama Eterna. Isso significa uma coisa: o equilíbrio entre vivos e mortos começa a ruir.
Helena tocou o peito, onde o símbolo queimava em silêncio. Pela primeira vez desde sua transformação, sentiu medo verdadeiro; não do sol, não da morte, mas de si mesma.
Adrian aproximou-se, segurando-a pelos ombros. Seus olhos, antes indomáveis, estavam cheios de algo raro: vulnerabilidade.— Se essa profecia for verdade… teu destino não pertence só a nós dois. Pertence a todo o mundo.
Helena ergueu o rosto, e sua voz, embora trêmula, saiu firme:— Então o mundo terá de aceitar. Porque eu não abro mão de ti, Adrian. Nem da eternidade que conquistamos juntos.
O ancião fechou o livro com um estrondo que ecoou pela câmara.— Preparem-se. Se os caçadores souberem que o Sangue Proibido corre em tuas veias, Helena, eles não descansarão até rasgar o céu para te destruir. E desta vez… talvez nem este Refúgio seja suficiente.
A chama negra ardeu mais alto, como se confirmasse suas palavras. Adrian apertou a mão dela, e ambos compreenderam: o romance que nascera em segredo agora se tornara a centelha de uma guerra sem precedentes.
A revelação ecoava no peito de Helena como um tambor de guerra, mas naquela noite, depois que o ancião se retirou e o fogo negro repousou em chamas baixas, só restavam ela e Adrian. O silêncio do Refúgio era quase religioso; as paredes de pedra gótica pareciam respirar em uníssono com seus corpos imóveis.
Helena tocou o peito, onde o símbolo ardia sob a pele como uma cicatriz viva. Por um instante temeu que aquilo a separasse dele, que a transformasse em algo estranho demais até mesmo para o olhar de Adrian. Mas quando ergueu os olhos, encontrou-o fitando-a não com medo, mas com uma mistura perigosa de desejo e devoção.
— Não importa o que dizem — murmurou ele, aproximando-se. — Maldição, profecia, sangue proibido… nada muda o que vejo diante de mim.
Helena sorriu, mas havia dor no gesto. — E o que vês, Adrian? Uma aberração entre caçadores e vampiros?
Ele a tomou pela nuca, puxando-a contra si com uma intensidade que fez a câmara inteira se encolher ao redor deles. — Vejo a minha perdição, e escolho cair nela todas as noites.
O beijo que se seguiu foi um pacto silencioso. Não havia pressa, mas um arrastar de séculos em cada movimento, como se o tempo se dissolvesse nos lábios de ambos. Helena sentiu a eternidade correr em seu sangue, uma corrente febril que a ligava ao dele. Sua recém-nascida imortalidade era ainda frágil, mas ao lado de Adrian, tornava-se insaciável.
Deitados sobre as pedras frias, fizeram do chão um leito de fogo. Cada toque era uma confissão, cada suspiro, uma promessa. Adrian percorreu sua pele como quem lê um grimório proibido, e Helena o envolveu como quem jura guardar um segredo até o fim dos tempos. Entre carícias e mordidas, entre gemidos e risos abafados, não havia mais profecia, nem anciãos, nem caçadores; apenas eles dois, entregues ao êxtase cruel de amar no limite entre vida e morte.
Quando o desejo cedeu ao cansaço, ficaram juntos, pele contra pele, olhando a chama negra que tremeluzia no altar distante. Adrian, em voz baixa, quase uma oração, falou:— Se o mundo vier contra nós, que venha. Não temo o fim, Helena. Só temo perder-te.
Ela deslizou os dedos em seu rosto, traçando os contornos que já aprendera a amar mais que a própria existência. — Então grava isso em tua eternidade, Adrian: mesmo que o céu se abra em fogo e os infernos ascendam, eu não te deixarei. Somos maldição e delírio, e viveremos cada gota disso juntos.
E ali, envoltos pela respiração da pedra e pelo coração proibido que pulsava em seu sangue, selaram o juramento que nenhuma profecia poderia quebrar: eles eram amantes condenados, e nada no universo teria força para separá-los.
Os dias no Refúgio eram tingidos de um silêncio pesado, quebrado apenas pelo eco distante das correntes que selavam os corredores proibidos. Mas Helena logo percebeu que havia algo mais denso que o silêncio: a desconfiança.
Nos salões de pedra, olhares a seguiam como punhais. Vampiros antigos, de presenças tão letais quanto estátuas vivas, a observavam com um misto de fascínio e desprezo. As conversas cessavam quando ela entrava, como se a simples menção de seu nome fosse capaz de invocar o próprio fogo negro que agora dormia em suas veias.
Uma noite, durante o banquete ritual, ela sentiu a primeira investida. Os cálices de prata tilintavam ao redor da mesa, e a carne humana, trazida em silêncio pelos servos escravizados, ainda sangrava sob as lâminas. Um dos vampiros mais antigos, de olhos de âmbar e sorriso gélido, ergueu a taça em sua direção.
— À caçadora marcada. A que carrega em si tanto veneno quanto promessa. — A ironia escorreu de sua voz como fel.
Helena sentiu o corpo inteiro se contrair, mas Adrian, sentado ao seu lado, pousou a mão sobre a dela — firme, como um aviso. Não era o momento de reagir.
Outro, de longos cabelos brancos e olhar cruel, completou:— Um híbrido não é um milagre. É uma fenda. Por ela, os caçadores podem nos destruir, ou pior… ela pode nos trair.
A acusação flutuou no ar como fumaça de velas negras. Todos os olhos voltaram-se para ela. Alguns curiosos, outros ávidos por sangue.
Helena respirou fundo e ergueu o olhar, deixando que sua voz ecoasse firme pelas paredes ancestrais:— Se quisesse destruir vocês, já o teria feito. Não estou aqui para caçar, mas para viver. Se isso ofende suas eternidades, que provem sua força contra mim.
O salão estremeceu em murmúrios, e por um instante parecia que o banquete se transformaria em massacre. Mas Adrian se ergueu, sua presença dominando como uma sombra colossal. Seus olhos rubros brilharam com fúria contida.— Quem ousar tocá-la, tocará em mim. — Sua voz retumbou como trovão. — E todos sabem que a minha ira não tem limites.
Um silêncio sepulcral se impôs. Os vampiros recuaram, mas a tensão permanecia, suspensa no ar como um fio prestes a se romper. Helena sabia: não era aceitação, mas temor. E o temor, entre vampiros, era tão instável quanto pólvora à beira da chama.
Naquela noite, sozinha com Adrian, ela murmurou contra o peito dele:— Eles não me querem aqui. Para eles, sou uma ameaça.
Ele a apertou contra si, como se o abraço fosse um escudo.— Então que temam. O que não entendem, desejam destruir. Mas eu não permitirei.
Mesmo assim, Helena sentia em seus ossos: o Refúgio não era um porto seguro, mas uma arena silenciosa. E em breve, alguém tentaria quebrar o equilíbrio com sangue.
As paredes do Refúgio sempre pareceram inquebráveis, como se a própria noite as tivesse erguido. Pedra ancestral, selos de proteção gravados em runas esquecidas, e guardiões que jamais descansavam. Mas o que parecia eterno, naquela noite, estalou como vidro sob a lâmina de uma fúria antiga.
Helena despertou com o som dos sinos de ferro, nunca antes tocados, exceto em lendas. O ar cheirava a ferro queimado e sangue fresco. Ao abrir os portões de seu quarto, encontrou um corredor em chamas: tochas quebradas, cortinas pegando fogo, e gritos de guerra rasgando o ventre da fortaleza.
— Caçadores. — sussurrou Adrian, já com os olhos rubros, a espada ancestral em punho.
Eles vieram como tempestade: armaduras negras, lâminas banhadas em prata, símbolos sagrados gravados no peito. Não eram homens comuns — eram a Ordem Escarlate, a mais antiga legião de exterminadores, os mesmos que Helena jurava um dia ter visto extintos.
O Refúgio transformou-se em campo de guerra. Vampiros ancestrais rasgavam gargantas e partiam espinhas em meio ao fogo, mas os caçadores pareciam conhecer cada fraqueza, cada rito de proteção. Explosivos místicos abriam fendas nas muralhas, e correntes encantadas aprisionavam até mesmo os mais fortes.
Helena lutava com Adrian ao lado, e pela primeira vez sentiu o peso do abismo que havia dentro dela. Quando uma lâmina de prata roçou sua pele, ela não caiu, gritou, e das veias explodiu uma chama escura, como sangue transformado em fogo. O caçador que a atacava ardeu em chamas negras, sem sequer tempo para gritar.
Ela olhou para as próprias mãos, horrorizada.— O que… o que eu sou?
Adrian não respondeu. Estava ocupado dilacerando três homens ao mesmo tempo, seus movimentos fluidos como dança macabra. Mas seus olhos, mesmo entre golpes, buscaram os dela. Havia orgulho, mas também medo.
No grande salão, o Conselho tentava resistir. Mas logo ficou claro: o Refúgio estava condenado. Um a um, os anciões eram derrubados, atravessados por lanças consagradas. O sangue escorria pelas escadas como um rio carmesim.
Foi então que Helena viu. Entre os caçadores, um rosto conhecido:O líder da investida, de armadura escarlate e capa negra, não era outro senão o Mestre Caçador que um dia a havia treinado — o mesmo que ela julgara morto anos atrás.
Ele ergueu a espada ainda pingando sangue e deixou que sua voz ecoasse pelo salão:— Helena! Minha cria rebelde… Você cumpriu o papel que eu sonhava: abriu para nós os portões do último Refúgio.
O mundo girou ao redor dela. Os vampiros pararam por um segundo, chocados. Adrian apertou a espada com tanta força que o cabo se partiu.
Helena sentiu o coração morto pulsar pela primeira vez em séculos imaginários.
Ela não era apenas traidora aos olhos dos vampiros. Ela era a chave da destruição do próprio santuário.
E na sombra de sua revelação, a noite jamais voltaria a ser segura.
O grande salão ardia. Lustres tombavam em chamas, o mármore negro estava riscado por sangue e fogo, e o uivo dos vampiros moribundos se confundia com o cântico blasfemo dos caçadores. Mas naquele instante, para Helena, tudo se reduzia ao olhar dele: o homem que julgara morto, agora erguendo uma espada manchada com o sangue dos anciões.
— Não pode ser… — sua voz saiu mais um sopro que um grito.
O Mestre Caçador sorriu. Não era um sorriso humano, mas a careta de alguém que se alimentava do desespero.— “Helena, minha pequena promessa quebrada. Achou que a morte me reclamara? Eu a ensinei a sobreviver. Eu a moldei. Você é a minha obra-prima.”
Helena recuou um passo, o fogo refletindo em seus olhos rubros.— Você me deixou para morrer naquela noite.
— “Eu a deixei renascer”, interrompeu ele, a voz ecoando como trovão. “Sua transformação não foi obra do acaso, nem de Adrian. Eu preparei o terreno para que a noite a recebesse. Cada ferida que sofreu, cada dor que a despedaçou… foram parte do ritual que a moldaria como a primeira vampira híbrida: meio caçadora, meio predadora.”
A revelação a atingiu como uma estaca. Sangue latejava em suas têmporas, um sangue que já não deveria pulsar. Híbrida… era isso que explicava sua força estranha, a chama negra que a devorara horas antes.
Adrian deu um passo à frente, a espada partida ainda firme em sua mão.
— Mentiras! Você apenas tenta envenenar o que ela é.
O Mestre riu.— “Mentiras? Pergunte a ela por que resistiu tanto à mordida. Pergunte por que sua sede não é igual à dos outros. Pergunte… por que a escuridão nela parece mais antiga do que a própria noite.”
Helena vacilou. Fragmentos de lembranças voltaram, o gosto metálico da primeira vez que bebera sangue, o fogo em suas veias, a sensação de que algo dentro dela não apenas renascia, mas despertava.
— Então fui apenas… seu experimento? — sua voz falhou, mas os olhos ardiam como lâminas.
O Mestre inclinou a cabeça, o orgulho estampado em cada traço endurecido de seu rosto.— “Não, Helena. Você é minha vitória sobre a morte. Minha filha forjada na fronteira do impossível. Aquela que destruirá esta raça decadente e trará de volta o equilíbrio que os vampiros roubaram do mundo.”
O salão explodiu em gritos e aço tilintando, mas Helena não ouviu. Seu mundo se resumia ao peso da revelação. O sangue em suas mãos queimava como fogo vivo, e cada respiração de Adrian ao seu lado a lembrava que havia algo mais, algo humano, impossível, proibido.
Ela ergueu o olhar, encarando o homem que chamava a si mesmo de criador.— Se eu sou sua obra-prima… então sua maior falha é acreditar que me controla.
E, pela primeira vez, as chamas negras não surgiram por acidente, mas pela sua própria vontade.
O Mestre recuou, surpreso.
E no instante seguinte, a guerra no Refúgio deixou de ser apenas vampiros contra caçadores. Era Helena contra o destino que ousaram escrever para ela.
O grito de Helena ainda ecoava quando o salão do Refúgio tremeu. A energia que ardia em seu peito, antes chama própria, foi arrancada dela como se mãos invisíveis a tomassem à força. Seu corpo se arqueou, e os olhos rubros se dilataram num brilho estranho; não era mais ela no comando.
O Mestre Caçador ergueu a mão, e Helena, como uma marionete sob fios invisíveis, avançou. Suas unhas eram garras, suas presas cintilavam à luz das tochas que ainda resistiam. Ela tentou gritar, tentou se segurar, mas a voz se afogava num silêncio de ferro.
— “Veja, Adrian. Eu disse que ela era minha obra-prima. Agora, será minha espada.”
Adrian correu até ela, mas em vez de abraçá-la, precisou lutar contra a fúria que não vinha dela, mas do poder que a envenenava. O choque de suas lâminas, o aço contra suas garras, soou como o pranto da própria noite. E cada golpe arrancava lágrimas que ela não podia derramar.
O Refúgio se tornou cemitério em minutos. Helena, possuída, rasgou gargantas, dilacerou corpos, abriu caminho pelo sangue dos que antes eram seus aliados. Os caçadores avançavam ao seu lado, como se fossem a extensão da sua própria vontade corrompida. O grito final dos anciões ecoou como sinos de funeral, e então restou apenas silêncio e cadáveres.
Quando a força que a controlava cedeu, Helena caiu de joelhos. O corpo de Adrian jazia diante dela, o peito atravessado pela lâmina do Mestre. Ainda respirava, mas era um sopro frágil, já entregue à eternidade.
— Adrian… — a voz dela saiu quebrada, como vidro estilhaçado. Ela o ergueu nos braços, e as lágrimas, enfim, vieram, quentes e salgadas, como se sua humanidade tivesse voltado apenas para torturá-la.
Ele sorriu, fraco, os lábios tingidos de sangue.— Você… sempre foi mais forte do que eu.— Não… eu falhei. Eu fui a arma que matou todos… até você.— Não… — ele fechou os olhos, a mão fria roçando o rosto dela. — Você foi… o meu amor. Sempre…
O silêncio o tomou, e Helena ficou sozinha no meio de um mar de cadáveres, com o coração despedaçado e a eternidade como prisão.
Ergueu o rosto, as lágrimas se misturando ao sangue.— Juro por cada estrela morta, Adrian… eu amarei você para sempre. Mesmo que o mundo me odeie. Mesmo que eu caminhe sozinha. O amor que me deu será meu castigo e minha força.
E com o corpo dele em seus braços, ela caminhou para fora do Refúgio destruído. A noite a acolheu como uma mãe cruel, e os ventos sussurraram seu luto.
A Rainha das Cinzas nascia ali — Helena, a vampira híbrida, amante de um morto, condenada a amar para sempre o impossível.
A lua se apagava lentamente atrás das nuvens, como se o próprio céu lamentasse o que acontecera no Refúgio. Helena permanecia no limiar entre a noite e o amanhecer, com Adrian morto em seus braços, o sangue dele tingindo a sua pele pálida como uma tatuagem eterna. O silêncio pesava, um silêncio que nem mesmo os corvos ousaram quebrar.
Mas então, algo impossível aconteceu. O corpo dele, frio, começou a pulsar em suas mãos. Não com vida humana, não com o bater de um coração perdido, mas com algo mais profundo: o eco da maldição que os unira. O sangue derramado pelos mortos, espalhado como um rio negro ao redor, começou a ser sugado até eles, arrastado por uma força invisível.
Adrian abriu os olhos. Não eram mais vermelhos como antes, nem dourados como um príncipe das trevas. Eram abismos. Dois eclipses queimando na escuridão.
— Helena… você não falhou. Você me completou.
Ela sentiu o gelo percorrer sua espinha. Ele não era mais apenas Adrian, o amante, o vampiro milenar. O sangue dos mortos, a fúria do Refúgio, a dor dos caçadores… tudo se condensara nele.— O que você se tornou? — ela sussurrou, horrorizada e fascinada.
Ele sorriu, e o sorriso não era mais humano.— O fim de todas as promessas. O nascimento da eternidade.
O céu rompeu-se em trovões. As estrelas pareciam cair como lágrimas incandescentes. O eclipse total se formou sobre eles, cobrindo a terra numa noite eterna.
Helena, ainda em pranto, sentiu a mão dele se fechar na sua.— Juntos, Helena. Não mais amantes amaldiçoados. Agora, deuses do caos.
E naquele instante, o mundo gritou. Cidades distantes acordaram com terremotos, mares se ergueram em ondas de fúria, e os vivos sonharam com olhos negros os observando. O amor deles, tão humano, tão frágil, havia parido algo impossível: um casal imortal que não governaria o submundo, mas o mundo inteiro.
Enquanto a terra se dobrava à nova era, Helena ergueu o rosto banhado em sangue e lágrimas. E em sua voz, não havia luto, apenas uma promessa ardente:— Que o universo se curve… diante da Rainha e do Rei da Noite.
O eclipse nunca terminou.
O fim era apenas o começo.




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